Mulheres do Saneamento: Soluções amazônicas para água potável conquistam a COP30

Apresentado na COP30, a Amazon Pororoca é um dos projetos de tecnologia social que busca garantir que comunidades ribeirinhas possam ter acesso ao tratamento de água, reduzindo o impacto da contaminação por doenças transmitidas pela falta de saneamento básico

Um dos pontos de maior destaque na Green Zone da 30ª Conferência das Partes sobre Mudanças Climáticas (COP 30) foi a apresentação do projeto Amazon Pororoca. Fundada por Vanda Pororoca, a iniciativa se propõe a resolver a condição de insegurança hídrica na Amazônia, uma região que detém a maior reserva de água doce da América Latina, mas cujas comunidades ribeirinhas, especialmente no Amapá e norte do Pará, ainda lutam por acesso à água potável de qualidade. O ciclo de enchente e vazante dos rios, somado às características geoquímicas de suas águas — brancas, pretas e claras, cada uma com seus desafios de sedimentos, materiais orgânicos e microrganismos —, impõe um obstáculo de saúde pública que exige soluções adaptadas.

A urgência por acesso a água é confirmada pelos dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) e do DATASUS, que confirmam a correlação direta entre a falta de saneamento básico e o alto índice de doenças de veiculação hídrica na região. O Amapá, por exemplo, destaca-se com 217 casos de febre tifoide entre 2007 e 2024, superando a média nacional de 115,9 casos e ficando atrás apenas do Pará na região Norte. 

O agravo é particularmente notável em Macapá e, de forma crescente, em municípios como Laranjal do Jari e Vitória do Jari. Cerca de 38% dos casos de tifoide ocorrem fora da área metropolitana, com um aumento de 50% entre 2022 e 2024. As crianças de 5 a 9 anos estão entre os grupos mais vulneráveis. Além disso, as notificações de hepatites no Amapá (2.977 casos no mesmo período) apontam a água e alimentos contaminados como principal fonte de infecção em 1.774 casos.

É neste cenário de crise silenciosa que nasceu a Amazon Pororoca. Vanda Pororoca, CEO da startup e líder comunitária oriunda do Rio Ubussutuba, no Marajó, Pará, expressa sua motivação em nome de sua comunidade, que “sofreu com a falta de água potável” durante toda sua vida. 

Vania Pororoca leva a bandeira da Amazônia com água potável (Foto: Thales Lima)

A solução, desenvolvida após sete anos de pesquisa em colaboração com um pesquisadores do Instituto Federal do Amapá (IFAP), é uma microestação de purificação que utiliza elementos orgânicos da própria natureza, como o caroço de açaí, processado em forno a 1.200 graus para atuar como um agente filtrante. A estação realiza os processos essenciais de clarificação, desinfecção, purificação, elevação do PH e esterilização, atualmente focada em água doce.

O projeto já demonstra impacto real, beneficiando 183 famílias em quatro comunidades, incluindo a primeira fábrica de bioeconomia da Amazônia. Vanda enfatiza que o sistema foi concebido para ser simples e de fácil manutenção pelo próprio ribeirinho, na “filosofia do Frank Aguiar: lavou, tá novo.” Contudo, a visão da CEO vai além da saúde; ela enxerga a água potável e a energia como pilares para o desenvolvimento da bioeconomia local. “A única maneira da bioeconomia crescer, se transformar é através de água. Se não tiver água, não tem como ter nada”.

Em termos de escalabilidade, a Amazon Pororoca busca investidores para atingir o mercado de milhões de pessoas sem acesso a esse bem precioso no Brasil.z A proposta central é garantir a autonomia hídrica familiar, com cada unidade de 80 litros por 24 horas saindo a R$ 6.000, e a maior, de 10.000 litros, por R$ 182.000. 

O objetivo é que cada casa tenha a sua microestação, provendo água não só para beber, mas para cozinhar, escovar os dentes e até para o banho, conforme o propósito de Vanda. A presença na COP30 é vista por ela como a realização de um sonho e o palco ideal para apresentar o projeto. A líder comunitária finaliza com uma meta clara e ambiciosa: “O meu foco é fazer que o presidente Lula veja o nosso projeto,” confiante de que a acessibilidade e o impacto social da tecnologia farão com que o governo federal abrace a iniciativa.

Mulheres do saneamento

A crise de saneamento no Brasil alcança níveis críticos em estados como o Amapá, onde apenas 40% da população de Macapá possui acesso à água, e o investimento por habitante é de R$ 63,00, de acordo com o Ranking do Saneamento 2025 do Instituto Trata Brasil. É neste cenário de invisibilidade e carência que surge o projeto “Mulheres do Saneamento e Saúde Ambiental no Meio do Mundo: Lata d’água na cabeça, lá vai Maria”, liderado por Girlene Chucre, ativista e servidora da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). O projeto não só visa levar a tecnologia de purificação SALTA-Z para comunidades rurais, como também dar protagonismo à mulher da Amazônia.

A tecnologia SALTA-Z, criada pela FUNASA, é um sistema de tratamento de água comunitário e alternativo, focado em servir pequenas populações desassistidas de água potável. Este sistema de baixo custo utiliza uma combinação de filtros e dosadores, sendo o elemento-chave do processo a zeólita. A zeólita é empregada na etapa de filtração para efetivamente eliminar contaminantes como ferro, manganês e turbidez (partículas em suspensão), assegurando que a água final seja de qualidade adequada para o consumo humano.

Com oito anos de atuação em busca da dignidade hídrica, Girlene Chucre explica que a iniciativa abrange uma vasta gama de grupos marginalizados: “as comunidades ribeirinhas, quilombolas assentadas, extrativista, a mulher do campo, a mulher da floresta e os povos originários”. O projeto nasceu de um diagnóstico de campo da FUNASA que revelou a sobrecarga e a invisibilidade da mulher nessas áreas, que são as mais impactadas pela falta de água potável e tratada. Chucre apresentou por vídeo-conferência o projeto na Casa do Saneamento, iniciativa da FUNASA para a COP30, no painel “Gênero, Raça e Juventude: a centralidade da equidade no acesso ao saneamento básico”.

Girlene apresenta o projeto por vídeo-conferência na Casa do Saneamento, proposta da FUNASA para a COP30 (Foto: Reprodução/Funasa)

A pesquisa de Chucre revelou uma transversalidade de impactos que vai além da saúde imediata. A ausência de água tratada gera adoecimentos por vetores, forçando as mulheres a dedicarem a maior parte do tempo ao cuidado da família. “Elas passam a maior parte do tempo cuidando da família que está adoecida. E quando ela consegue o emprego, ela não fica por muito tempo”, explica Chucre, revelando o ciclo de pobreza e exclusão social. O problema se estende à educação: “o filho dessa mulher, ele não consegue tirar boas notas, por exemplo, no Enem, os filhos dessa mulher são os pardos e pretos que são os mais impactados.” O projeto, ao levar água potável, não só alivia o adoecimento, mas promove o aprendizado, pois a tecnologia social, para Chucre, é a “união dos saberes, do técnico e da comunidade”.

Um dos achados mais preocupantes do diagnóstico situacional foi a identificação de uma prática perigosa de autotratamento da água. Em um esforço desesperado para clarificar a água do rio, muitas comunidades utilizam doses excessivas de hipoclorito de sódio e sulfato de alumínio, sem qualquer cuidado. Chucre relata que a administração desses químicos é “desordenada” e perigosíssima: “eles achavam que quanto mais cloro eles colocassem o efeito seria melhor.” Esse uso descontrolado de produtos químicos acarreta sérios riscos à saúde, como a incidência de gastrite, já observada pela ativista nas comunidades.

O perigoso coquetel químico utilizado sem controle é uma ameaça silenciosa. O cloro, em excesso, pode reagir com substâncias orgânicas naturais e formar trihalometanos (THMs), compostos organoclorados conhecidos por afetar a tireoide, o sistema nervoso, o fígado e os rins, além de aumentar o risco de cânceres e doenças cardiovasculares, segundo a própria Organização Mundial da Saúde (OMS). O sulfato de alumínio, usado para clarificar, também exige dosagem precisa, pois o uso desordenado por leigos representa um perigo gravíssimo.

O perigoso coquetel de químicos para o tratamento da água na região do Bailique (Foto: Thales Lima)

Diante do abandono estatal e da autoadministração química, a resposta do projeto é a tecnologia Salta Z. Trata-se de uma solução alternativa simplificada para tratamento de água para consumo humano. Girlene Chucre, que conquistou a primeira Salta Z para o Amapá em 2017 após um encontro com seu inventor, Eládio Braga, descreve o funcionamento: a água do rio ou lago passa por um dosador controlador de cloro e, em seguida, por um filtro Salta Z composto por areia e carvão, concluindo um processo que a entrega “literalmente tratada, a água potável.” A inclusão das mulheres na implantação, um dos primeiros feitos do projeto, garante a sustentabilidade e a leitura de que a mulher, como cuidadora, é essencial para a manutenção dessa dignidade hídrica.

Tecnologia que Dessaliniza

O Arquipélago do Bailique, região na foz do rio Amazonas, no Amapá, enfrenta uma ameaça crescente: a salinização do rio. Historicamente um fenômeno sazonal, a intrusão de água salina, vinda do Oceano Atlântico, intensificou-se e agora se estende por todo o verão, pressionando o acesso das comunidades à água potável e agravando as vulnerabilidades de uma região já fragilizada pela perda de infraestrutura básica, como unidades de distribuição de água potável destruídas pela erosão.

Em meio a este cenário, emerge o projeto “Água é Vida”, uma iniciativa impulsionada pela ativista ambiental Rozimar Nogueira, moradora do arquipélago há mais de dez anos. Seu envolvimento com o local se transformou em uma dedicação incansável para resolver um problema de saúde pública que ela viu surgir e se agravar.

Rozimar percebeu a urgência do problema ao observar os sinais de adoecimento da população ribeirinha. “Eu comecei a perceber pele escamosa, barriga inchada, a coloração do cabelo mudando, problemas de diarreia em várias comunidades”, detalha a ativista. O fator de risco principal era a crescente temporalidade da salinidade: “Quando chegava o verão, eu percebi que o sal não ficava mais apenas três meses, já temos comunidades que ficam seis meses com sal. Daí a necessidade de se criar um projeto e comecei a pesquisar”, disse. 

Rozi se dedica incansavelmente para resolver um problema de falta de saneamento básico (Foto: Thales Lima)

Sem qualquer conhecimento técnico prévio, Rozimar iniciou sua jornada em 2016 com a força da determinação, criando protótipos artesanais a partir de filtros cavados em madeira. Através de pesquisas intensas na internet, ela buscou evoluir o sistema, chegando a um dessalinizador funcional. A virada ocorreu em 2019, quando, após buscar a parceria de engenheiros químicos, eletrônicos e mecânicos, conseguiu colocar em operação um dessalinizador capaz de retirar 100% do sal da água, tornando-a potável.

Por se tratar de uma tecnologia social, o desafio subsequente foi o financiamento e a replicação. “Aí nós fizemos um contrato, um termo de fomento com a Prefeitura de Macapá, que só sairia os valores por projeto”, explica Rozimar, destacando a metodologia de prestação de contas que garantiu a continuidade. Dessa forma, o projeto foi replicado com sucesso, contemplando as comunidades de Macedônia, Freguesia e Livramento.

Eliseu Farias, liderança da Comunidade Freguesia, explica como o sistema de dessalinização do projeto “Água é Vida” funciona (Vídeo: Thales Lima)

Com o apoio da Prefeitura de Macapá e da Associação de Comunidades Tradicionais do Bailique (ACTB), o projeto “Água é Vida” atualmente opera com um custo de R$ 199 mil por estação, com capacidade de produzir 25 mil litros de água por dia. Embora a produção caia para 12 mil litros no pico da salinização, o sistema representa um alívio fundamental para as famílias.

A ativista reforça que o investimento em saneamento é, na verdade, uma economia para o sistema de saúde: “Eu sempre acentuo que se você tem água potável em uma comunidade, você tem a diminuição desse ribeirinho no posto de saúde e é isso que eu espero que o gestor entenda desses olhares”.

Apesar da clareza sobre a gravidade da salinização e a eficácia das soluções locais como a implementada no Bailique, a falta de investimento em mitigação, prevenção e monitoramento dos fenômenos ambientais (erosão, intrusão salina) persiste como um obstáculo. A sobrevivência e o desenvolvimento socioeconômico das comunidades do Bailique, assim como de toda a zona costeira amazônica, dependem da implementação de políticas públicas robustas que se espelhem em iniciativas de sucesso como o “Água é Vida”.

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