PROJETO LITERÁRIO UNE BRASIL E GUIANA FRANCESA PARA RESGATAR GUARDIÕES DA FLORESTA

Livro Maskililo-Curupira reúne histórias de vários escritores. Editoria Atipia.  No extremo norte da Amazônia, onde o Oiapoque marca a linha […]

Livro Maskililo-Curupira reúne histórias de vários escritores. Editoria Atipia. 

No extremo norte da Amazônia, onde o Oiapoque marca a linha imaginária entre países mas não entre culturas, uma coletânea literária surge para costurar novamente territórios que a floresta sempre manteve unidos. Maskilili–Curupira, obra recém-lançada pela editora Atipa, na Guiana Francesa, reúne treze autores de diferentes origens — brasileiros, guianenses, indígenas e mais, para repensar as narrativas que atravessam a fronteira e para recolocar no centro do debate dois dos seres mais antigos e simbólicos da região: o Maskilili e o Curupira.

A ideia do livro nasceu de uma conversa aparentemente simples. A jornalista Catherine Lama, do Guyane La Première, procurou o escritor e editor Erik Médaille para propor um projeto vinculado à COP30, que teria o Curupira como mascote oficial do evento. Ela sugeriu que o personagem brasileiro se encontrasse literariamente com o Maskilili, figura presente na Guiana, em uma obra que aproximasse autores dos dois lados da fronteira. Médaille relembra que não sabia, no início, como abordar o desafio. Depois de semanas pensando, concluiu que não deveria ser apenas um livro seu, mas uma obra coletiva. Treze autores foram convidados — entre eles indígenas, professores, romancistas, contadores de histórias e artistas — para escrever versões próprias, enraizadas em suas memórias, tradições e imaginários. “Cada um tinha sua visão, seu imaginário. Foi isso que tornou o livro possível: a riqueza dessas diferenças”, explicou.

                            Escritora Carine dos Santos participou do lançamento na Guiana Francesa Foto: Arquivo Pessoal Carine dos Santos

A força da obra está justamente na tradução do universo amazônico a partir de vozes plurais. Para muitos desses autores, as figuras da mata não são personagens folclóricos, mas presenças vivas. Entre eles está Carine, brasileira nascida na Guiana Francesa, professora e pesquisadora das culturas de fronteira, que participou do projeto com uma história profundamente pessoal. “Minha maior preocupação, quando escrevo algo científico ou literário sobre a oralidade e as crenças dos povos amazônicos, é não reduzir tudo a folclore, lenda ou simples crendice”, disse. “Os sagrados da floresta não são personagens. Eles habitam o nosso cotidiano.”

A fala de Carine ecoa os fundamentos culturais do próprio Maskilili e do Curupira. O Curupira, descrito por cronistas desde o século XVI, é o guardião da mata e dos animais no imaginário brasileiro. Seus pés virados para trás confundem caçadores e invasores, simbolizando a sabedoria da natureza que protege a si mesma. Já o Maskilili, figura recorrente nos territórios indígenas da Guiana Francesa — especialmente entre povos Palikur-Arukwayene, Galibi Kali’na e Wayãpi — é um espírito veloz, travesso e protetor de áreas sagradas. Ele assovia, ri, altera caminhos, causa medo e respeito. Nos relatos coletados por antropólogos como Jean Hurault, o Maskilili geralmente aparece como um aviso: não invadam o que não lhes pertence. Não rompam os limites da floresta. Não ultrapassem o que é sagrado.

Curupira. Obra de Júlio Garcia. 

Foi com essa mesma compreensão que Carine construiu seu texto. Ela conta que travou durante a escrita, insegura sobre como transmitir a emoção das histórias que ouviu desde pequena, sempre contadas pelos pais em noites na calçada ou em conversas que misturavam cotidiano e mistério. Um dia, o pai — Rudá, seu maior contador de histórias — começou a lembrar da própria infância, quase falando sozinho, como se conversasse com suas próprias memórias. Carine diz que, naquele instante, tudo se alinhou: começou a escrever no mesmo momento, com o caderno no colo. “Para ser sincera, eu nem reli o texto depois que enviei o manuscrito final. É como se ele guardasse um segredo que eu quero deixar guardado.” Ela descreve sua relação com a floresta não como cenário, mas como extensão de si. “A floresta sempre fez parte da minha vida. Aprendi a respeitá-la, a sentir sua força, a reconhecer seus sinais.” As histórias que ouviu — e as que viveu — hoje são contadas aos filhos, misturando memória, medo e encantamento. “Sempre que eu ouvia meu pai contar essa história, havia algo no olhar dele: um certo medo, mas também um profundo respeito. O medo também pode ser caminho de aprendizado.”

A coletânea também apresenta perspectivas muito distintas. Há quem escreva a partir de registros militares na selva; há quem explore a tradição oral; há ficções futuristas, aventuras, cenas de mata e memórias familiares. Entre os autores estão a doutora Kali’na Mireille Ho-Sack-Wa Badamie, o professor e pesquisador Rosuel Lima-Pereira, a escritora Christine Léon Bourgeois, o dramaturgo H.K. Bronson, o contador de histórias David Mérour e o jovem premiado Rémy Péru-Dumesnil. As origens são diversas, mas a floresta é a mesma.

O livro percorre temas que hoje são urgentes: conservação, espiritualidade, cosmologia, memória, medo, violência, resistência. Como afirma Carine, muito antes de o mundo falar em “crise climática”, a floresta já alertava por meio dos encantados. “As histórias do Curupira, do Maskilili, dos encantados, são avisos. São memórias vivas de que a Terra não é um recurso: é um ser que também sente e reage. Se a gente aprender a escutar de novo essas vozes, talvez ainda haja tempo de nos salvar junto com ela.”

Para Erik Médaille, o livro funciona como uma ponte cultural entre Brasil e Guiana Francesa — países que compartilham rios, povos, florestas e histórias, mas que raramente se veem representados juntos na literatura. Em um momento em que a Amazônia ocupa o centro das discussões globais, inclusive nos debates da COP, Maskilili–Curupira amplia a provocação: a floresta não precisa apenas ser debatida, precisa ser entendida nos termos daqueles que vivem nela. O livro assume essa missão ao reunir escritores que carregam a mata na língua, na memória e no corpo.

Num território marcado por fronteiras políticas, mas guiado por encantados que nunca reconheceram limites, a coletânea se coloca como gesto de reconexão. Um reencontro entre mundos que sempre foram um só. E entre personagens que nunca desapareceram — apenas esperavam que alguém voltasse a escutar.

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