O calor da manhã já pesa sobre a comunidade de Conceição. O ar úmido traz o cheiro da mata e da água doce, enquanto as vozes dos moradores se misturam ao canto dos pássaros e ao som ritmado dos remos cortando o rio. À beira do espelho d’água, o líder quilombola Jesus Trindade aponta para a nascente. “É ali que tudo começa”, diz. “Se a gente não proteger a nascente, a vida se acaba. A água é vida.”
No território quilombola Lagoa do Maracá, no sul do Amapá, a água é mais que um recurso: é memória, espiritualidade e fronteira política. As comunidades de Conceição, Mari, Fortaleza, Laranjal e Joaquina vivem cercadas por florestas alagadas, igarapés e lagos que alimentam o rio Maracá — um dos principais afluentes da margem direita do rio Jari. É também ali que se travam disputas silenciosas entre preservação e exploração, entre o direito à terra e a omissão do Estado.
Esta é a terceira reportagem da série Amazônia Quilombola, da Rede Cidadã InfoAmazonia, que mostra como os territórios e comunidades, revelados pelo levantamento do Instituto Socioambiental (ISA) e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), são fundamentais para a manutenção das florestas, mas seguem vulneráveis diante de conflitos e da lentidão na titulação. A produção é uma parceria entre a Agência Urutau e InfoAmazonia.


O levantamento mostra que no Amapá a área de corpos d’água no Amapá cresceu 250% entre 1985 e 2024, segundo dados da rede Mapbiomas. A variação de área alagada e de corpos d’ água ocorreu principalmente na área do território quilombola Lagoa do Maracá, impulsionada pela conservação das florestas quilombolas.
Para a análise dos corpos d’água, o estudo utilizou dados espaciais e, por isso, recomenda cautela na interpretação dos resultados, considerando fatores naturais como as variações sazonais de cheia e seca características da região amazônica. Apesar disso, o estudo destaca o papel vital desses territórios na proteção de rios e nascentes. Para as comunidades, essa ligação entre território e água se constrói não só com preservação, mas também com fé e resistência.
[MAPA] https://infoamazonia.org/maps/especial-quilombolas-amapa-urutau/#
O levantamento destaca ainda que o Amapá é o terceiro estado com mais territórios quilombolas da Amazônia Legal, com 31 territórios e 179 comunidades quilombolas identificadas. O estudo integrou bases de dados sobre territórios quilombolas, áreas já delimitadas, e quilombos, comunidades quilombolas representadas por pontos no mapa da Amazônia Legal.
‘A nascente é a nossa caixa d’água’
O território quilombola do Maracá foi reconhecido oficialmente em 2013 pela Fundação Cultural Palmares, mas ainda não recebeu o título definitivo. A ausência do documento coletivo, explica o presidente da Associação Quilombola dos Remanescentes das Comunidades do Lago do Maracá (AQRCILM), Hamilton Videira, mantém a comunidade vulnerável. “Enquanto não desmembrar, a gente continua como assentado, e qualquer um pode entrar pelos fundos e abrir lote. A titulação é o que nos daria poder de proteger o que é nosso”.
Com cerca de 58 mil hectares, a área faz parte da Floresta Estadual do Amapá (FLOTA), criada para o uso sustentável da floresta. Mas, na prática, é um território em disputa. O Maracá enfrenta invasões, desmatamento, pesca predatória, tentativas de plantio de soja, a chegada do gado búfalo, e, mais recentemente, os efeitos das mudanças climáticas.

Embora o levantamento aponte o crescimento dos cursos d’água, os efeitos das mudanças climáticas preocupam os moradores. Jesus Trindade, liderança respeitada e um dos fundadores da associação, caminha perto do rio Macará. Atravessa o olhar pela margem e aponta para o horizonte. “A água recuou. Lá no igapó, dá pra ver a cinta nas árvores, onde a água chegava. Agora ela não chega mais. É o coração da terra batendo mais fraco.”
Ele lembra que, entre 2013 e 2015, um projeto de plantio de soja quase se instalou nas cabeceiras do rio. O projeto previa o uso de agrotóxicos em larga escala. A denúncia feita pela comunidade ao Ministério Público Federal (MPF) impediu o avanço. “Se a gente tivesse se calado, a soja tinha tomado tudo. O peixe ia boiar morto. Mas a gente lutou, com o que tinha: fé e coragem. Foi Deus que agiu.”
Desde então, o cuidado com as nascentes se tornou missão coletiva. Famílias se revezam na limpeza das margens, evitam desmatamento e queimadas e ensinam às crianças o valor da água que nasce ali. No Maracá, preservar o rio é mais que tarefa ambiental, é um ato de fé e herança ancestral.
Hamilton diz que a comunidade entende as águas como parte da própria identidade. “A nascente é a nossa caixa d’água. Se ela seca, tudo seca: o peixe, a roça, a vida.” Mas proteger sem poder demarcar é como tentar segurar água nas mãos. “A gente observa que o rio está diminuindo. O calor aumentou, e agora aparecem praias onde antes era fundo. O rio está mais fraco.”

Entre os moradores mais antigos, as lembranças de um tempo de fartura ainda resistem. Havia peixe em abundância, mandioca grossa, caça fácil. Hoje, tudo é mais difícil. “A gente achava que trazer búfalo era progresso. Ia ter leite e queijo. Hoje a gente chora a desgraça deixada por eles”, conta Anastácio Trindade, filho de antigos líderes e um dos articuladores da associação. O peso dos animais compactou o solo, destruiu vegetação de margem e assoreou o igarapé.
“Nosso rio está assoreando. Nunca se viu o igarapé seco desse jeito. Mas ainda dá pra salvar se a maioria quiser”, diz Anastácio, que repete o que aprendeu com a mãe: preservar é um dever com os que virão. “Nossa luta não é por nós. É pelos netos. Se continuar assim, ninguém vai ter nada pra contar.”

A degradação foi agravada por incêndios florestais. Em Mazagão, município vizinho, o número de focos de fogo aumentou nos últimos anos, colocando o território em risco. Dados oficiais confirmam que a região tem enfrentado pressão constante por queimadas.
Entre 2024 e 2023, o município liderou o número de focos de calor com 668 e 443 registros, respectivamente, segundo análise de dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Nos anos anteriores, a ocorrência também foi significativa: 134 focos em 2022, ocupando a 3ª posição no ranking estadual; 74 em 2021, também em 3º lugar; e 76 em 2020, quando ficou em 4º. Em 2025, até o momento, foram identificados 20 focos, colocando o município na 8ª posição.
David Vieira, jovem quilombola que hoje integra a brigada civil, diz que a floresta “anda quente como nunca”. Ele explica que a vegetação seca com facilidade e qualquer fagulha pode se transformar em incêndio. “De uns cinco anos pra cá, tudo mudou. O rio está mais raso, os Igapós sumiram. Agora a gente precisa sair para conscientizar o povo, porque se o fogo continuar, a água vai embora junto.”

A Amazônia que brota da água
A nota técnica Amazônia Quilombola revela que os territórios quilombolas funcionam como barreiras contra o desmatamento e reservatórios de água. Segundo o estudo, os territórios quilombolas preservam 80 mil hectares de corpos d’água, o que eleva a taxa geral de proteção ambiental para 94,4%, quando somada à proteção de florestas e outras formas de vegetação natural.
Além do Amapá, o relatório destacou um aumento de 77% nos corpos d’água no Mato Grosso. Já os estados do Amazonas, Pará, Rondônia, Maranhão e Tocantins apresentaram uma taxa média de perda de 35% da área original de corpos hídricos.
Em todos os estados onde houve perdas na cobertura de corpos d’água, também foi registrada perda de cobertura florestal. O estudo sugere que isso pode representar uma evidência empírica da relação entre a proteção florestal e a disponibilidade hídrica nos territórios quilombolas.
No Maracá, os moradores já têm o conhecimento ancestral. “Aqui, quando o mato cai, o rio sente. A água esquenta e o peixe desaparece”, explica David Vieira, que hoje atua como brigadista. “A floresta é o guarda-chuva do rio.”
Os jovens da comunidade têm tentado reverter esse quadro com ações próprias: campanhas de limpeza de igarapés, plantio de árvores nativas e rodas de conversa nas escolas. Hamilton resume, “O que a gente faz aqui é proteger não só para nós, mas para o mundo inteiro. Se a nascente morre, o rio morre. E se o rio morre, o mundo seca.”
A fé que sustenta
Entre os rios e as rezas, a fé continua sendo o eixo invisível que sustenta a resistência. No Maracá, os terços e ladainhas dividem espaço com os cânticos que pedem chuva, fertilidade e proteção. Durante o mês de maio, as famílias caminham até a beira do igarapé para rezar. “A gente reza pedindo chuva não só para molhar o chão, mas pra Deus lembrar da gente e das águas que nos sustentam”, explica Dona Maria do Carmo, conhecida como “Mãe Carminha”, que conduz o grupo de rezadeiras há mais de 40 anos.
A religiosidade se mistura à ecologia: proteger a água é proteger o sagrado. “Quando a nascente seca, a gente sente no corpo. É como se faltasse ar”, diz Anastácio Trindade. Ele lembra que, nas antigas ladainhas, já se falava em cuidar do “olho d’água”, como quem cuida de um filho.

Para muitos moradores, a fé é também um método de resistência. “A gente ora e trabalha. Planta, cuida, limpa a beira do rio, porque rezar sem fazer não resolve”, resume Jesus, com o olhar sereno sobre a correnteza. “Deus fez o planeta com mais água do que terra porque sabia que é dela que vem a vida.”
No final da tarde, o sol se deita sobre o espelho do rio Maracá. Jesus observa o reflexo e fala baixo, quase como uma prece: “A água é o primeiro território. Enquanto tiver um quilombola em pé, o Maracá não vai secar.”
Mapas que não enxergam o território
Apesar de protegerem um ecossistema estratégico, as comunidades quilombolas seguem invisíveis para grande parte das políticas ambientais. O levantamento do ISA e da CONAQ mostra que o desmatamento cai de 17% em áreas privadas para 3% em territórios quilombolas titulados, segundo dados da rede MapBiomas. Para as lideranças, as estatísticas não se convertem em apoio concreto.
“O Incra reconheceu o território rápido, mas o processo de titulação parou”, diz Hamilton. “A gente manda ofício, cobra visita, e sempre tem uma viagem, uma reunião, um atraso. É um empurra com a barriga que custa caro. Sem título, a gente não tem acesso a projeto, não tem crédito, não tem proteção.”
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) confirma que o processo de titulação do território quilombola do Lago do Maracá tramita desde 2014, sob o número 54350.000739/2014-84. Segundo o órgão, o avanço da titulação depende de recursos e de pessoal técnico.
O Incra cita escassez de servidores e orçamento como principais entraves administrativos, além de conflitos fundiários decorrentes da sobreposição do território quilombola com o Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Maracá, criado em área vizinha e alvo de disputas entre assentados e famílias quilombolas.
De acordo com o processo nº 1008186-65.2025.4.01.3100, que tramita na Justiça Federal do Amapá, o território segue em fase de RTID, com relatório antropológico finalizado e pendências fundiárias ainda sem solução.
As vozes da Conaq e o Brasil que não escuta
Para Núbia Souza, liderança da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) no Amapá, o caso do Maracá resume uma política histórica de omissão. “A gente não é uma estratégia. Nós sempre existimos na preservação do clima. Secularmente, entregamos ao mundo um bem imaterial, ambiental, cultural e ancestral. Então, não é estratégia: é resistência”, afirma.
Ela critica o distanciamento entre as decisões globais sobre o clima e quem realmente preserva os territórios. “A COP30 garantiu lugar para empresários do mundo todo, mas não conseguiu garantir a fala das comunidades quilombolas nos painéis. A Amazônia é discutida sem os povos que a mantêm viva”.




Ela aponta que o maior entrave é financeiro. “Seriam necessários de quatro a cinco bilhões de reais para titular e desintrusão de todos os territórios do país”, explica. “No Amapá, quase todas as terras são públicas. Como é que o Estado vai indenizar a si mesmo? Poderia titular de imediato.” Diferente do restante do país, no Amapá o Estado não precisa indenizar ninguém para titular os territórios, eliminando assim a principal barreira financeira que se observa em outras regiões.
Além da morosidade institucional, Núbia denuncia as novas ameaças. “A Petrobras entrou na costa do Amapá sem nos consultar. Mesmo com estudos técnicos alertando sobre o risco de impacto nos rios e manguezais, o Estado foi omisso. Isso é uma violação direta ao direito de consulta prévia.”
Ela cita ainda o avanço da urbanização e a facilidade com que grandes empresas obtêm licenças ambientais. “É contraditório dizer que o Amapá é o estado que mais preserva se ele não consulta os quilombos. Como é que eu digo que preservo se não garanto direito?”, questiona.
No final da tarde, o sol se deita sobre o espelho do rio Maracá. Jesus observa o reflexo e fala baixo, quase como uma prece: “A água é o primeiro território. Enquanto tiver um quilombola em pé, o Maracá não vai secar.”
Esta reportagem é uma parceria da InfoAmazonia com Agência Urutau e faz parte da Rede Cidadã InfoAmazonia, iniciativa para criar e distribuir conteúdos socioambientais da Amazônia.
Ilustração de abertura: Utópika Estúdio


