Com custo milionário, máquinas dessalinizadoras de água estão sem funcionar no Bailique

Investimento de R$ 18 milhões do Governo do Amapá em dessalinização falha em levar solução à crise da água salgada no arquipélago, gerando revolta e insegurança hídrica entre os moradores.

O sistema de dessalinização no arquipélago do Bailique, Amapá, falhou em cumprir sua missão. Em menos de um ano, as máquinas destinadas a levar água potável à região, localizada a 180 km de Macapá, já apresentam inoperância, segundo relatos das comunidades. Apesar do alto custo de implantação, o equipamento de tecnologia básica exige manutenção contínua, forçando os moradores a realizarem reparos.

A chegada do verão amazônico traz, além das altas temperaturas, um fenômeno devastador para o Bailique: a intrusão da água salgada do Oceano Atlântico. A salinização compromete integralmente o abastecimento de água potável em todas as comunidades afetadas.

Para Jacinto Sarges, morador da comunidade do Equador, a partir de setembro é comum a água salgada invadir as áreas mais próximas ao oceano. “Antes, a gente coletava água no rio mesmo e tratava de forma caseira, usando sulfato [de alumínio] para clarear e hipoclorito [de sódio] para matar as bactérias. Vivemos assim por muito tempo”, relembra.

Para não ficar sem água, virou um hábito das comunidades estocar em caixas d’água o que seria consumido até a chegada do inverno, em janeiro. “Usamos para coletar água da chuva, que é mais limpa, e aplicamos hipoclorito. Não é o tratamento mais adequado e a quantidade não é suficiente, mas com racionamento, dá para viver o período da crise da água salgada”, explica Sarges.

Ele relata que, quando a água está salgada, é impossível utilizar a água do rio até mesmo para afazeres domésticos, como lavar roupas, preparar alimentos ou tomar banho. Na sua comunidade, onde a máquina não foi instalada, as famílias precisam se deslocar até o Campo do Jordão, a comunidade mais próxima com o sistema de dessalinização.

“As pessoas levavam os ‘carotes’, abasteciam e traziam. Tinha uma cota média de 20 ou 30 litros. Como a máquina tem um reservatório pequeno, de 500 ou 1.000 L, ela precisava parar quando enchia e não havia quem retirasse a água”, conta Sarges, que também aponta o custo do combustível para buscar a água como um fator limitante.

Manutenção voluntária 

Na comunidade do Igarapé Grande da Terra Grande, Aurélio Ferreira virou o responsável por realizar reparos e manutenções na máquina dessalinizadora por conta própria. Ele acompanhou a instalação do primeiro equipamento no arquipélago e, observando os técnicos, aprendeu a operar o sistema.

“Essa máquina tem garantia de 3 anos, mas por causa da água salgada e barrenta, esse tempo pode diminuir. A maior parte da manutenção que faço é no filtro de osmose reversa, que é para tirar o sal, e na bomba”, detalha Ferreira. Ele explica que o filtro principal precisa ser trocado a cada 30 dias se o uso for constante para dessalinização.

Ferreira afirma que faz a manutenção de forma voluntária, sem remuneração, apesar de promessas de emprego pela empresa responsável. A manutenção mais complexa é de responsabilidade da fabricante da máquina, a empresa UltraH2O, em parceria com o Instituto Vontade, Ação e Saúde (IVAS), que possui um acordo de cooperação com a Companhia de Abastecimento de Água e Esgoto do Amapá (CAESA).

Inoperância das máquinas

Os problemas de inoperância das máquinas dessalinizadoras não se limitam a uma única localidade. Em diversas comunidades do Bailique, os equipamentos, instalados há meses, permanecem parados ou incompletos, expondo o descaso com o projeto.

Na comunidade do Junco, a instalação foi iniciada há cerca de dois meses, mas o sistema ainda não está plenamente em funcionamento. A maioria da comunidade utiliza água da chuva armazenada. O morador Ezequias Brito relata que a empresa responsável encheu o reservatório apenas no modo de filtragem, e prometeu retornar quando a água estivesse salgada para realizar o teste final de dessalinização.

“Eles não fizeram o teste com a água salgada, porque agora que está começando a ficar salobra. Ficaram de retornar para fazer um curso e treinar pessoas da comunidade para operar o sistema e evitar a falta de água,” explica Ezequias.

No Igarapé do Meio, que também enfrenta a salinização, a máquina foi instalada, mas segue inativa. Segundo Nilson Ferreira, conhecido como Seu Ceará, o equipamento está na comunidade há quase dois meses sem funcionar.

“Ela está instalada, mas está faltando o resto de material, acho que para terminar de concluir. O problema parece ser falta de vontade,” comenta Nilson.

A necessidade de água é urgente em São Benedito da Freguesia, uma comunidade de 60 pessoas localizada na foz do Amazonas e em contato direto com o oceano. No entanto, o equipamento lá instalado também apresentou problemas imediatos. Nilton Neves informou que a máquina está inoperante devido a falhas na alimentação solar.

“A máquina está dando mau contato com a energia solar. A gente não vai mexer porque não sabe. Ela está lá, parada, e a gente entra em contato com eles [da empresa] e eles não vêm,” desabafa Nilton.

A situação é ainda mais grave, segundo Katiane Melo, filha de Nilton. A jovem registrou em vídeo as falhas da instalação, que geraram transtornos à comunidade. “Assim que eles instalaram a máquina, o reservatório de água já apareceu furado. E assim ficou até hoje”, diz Katiane.

Para ela, o equipamento que deveria ser uma solução piorou a situação, criando risco de acidentes devido aos choques elétricos que a máquina estaria transmitindo.

Ineficiência da tecnologia 

Geová Alves, presidente da Associação das Comunidades Tradicionais do Bailique (ACTB), questiona a adequação das máquinas dessalinizadoras implantadas. Ele afirma que a tecnologia é básica e insuficiente para a complexidade do tratamento de água no arquipélago, que lida com água barrenta e alto teor de sal.

“A máquina é pequena para atender a necessidade de uma família, por exemplo, ou de uma comunidade grande. É só o básico, para beber. Se fosse de uso diário e constante, talvez não desse conta de atender uma comunidade com 20 famílias”, avalia Geová, que também já recebeu relatos de que o equipamento não foi capaz de eliminar o gosto salgado da água.

O plano total do Governo do Amapá prevê a implantação de 32 máquinas dessalinizadoras no Bailique, Baixo Araguari e Sucuriju, das quais 16 já foram instaladas. O custo total do projeto é de R$ 18 milhões, com cada máquina avaliada em R$ 584 mil (dados obtidos via Lei de Acesso à Informação).

Apesar do alto investimento, cada máquina produz, no máximo, 2 mil litros de água por dia – quantidade insuficiente para suprir as necessidades integrais de muitas famílias. Em média, uma família de cinco pessoas consome entre 1.000 e 1.250 litros de água por dia.

Procuradas pela reportagem, a empresa UltraH2O e o Instituto IVAS não responderam sobre as máquinas paradas e o cronograma de manutenção. O representante da CAESA no Bailique também não respondeu ao nosso contato.


Thales Lima

Jornalista

jornalista amapaense, comunicador e ativista socioambiental. Com experiência em comunicação no terceiro setor e na produção de reportagens, contribuiu para o Nexo Jornalismo e foi bolsista no InfoAmazonia, com foco em jornalismo de dados e narrativas sobre a Amazônia e a agenda climática.

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