A recente crise de desapropriação na Comunidade Taba Branca, um território remanescente quilombola localizado na Área de Preservação Ambiental (APA) do Rio Curiaú, em Macapá, é apenas o capítulo mais recente de uma complexa e controversa batalha judicial que se arrasta por décadas, envolvendo herdeiros quilombolas e uma família ligada ao judiciário e a empreendimentos imobiliários.
A juíza Keila Christine Banha Bastos Utzig é a requerente no processo judicial que busca a desocupação de terras ancestrais. Numa controvérsia que se iniciou com seu pai e que, na fase anterior, havia sido resolvida por meio de um acordo que garantia a permanência das famílias na área, levantando agora suspeitas de má-fé e especulação imobiliária contra os direitos territoriais da comunidade.
A consulta ao portal da transparência da Controladoria-Geral da União (CGU) revelou que a juíza é sócia de uma construtora, a SPE Condomínio, e também de um empreendimento imobiliário em Macapá, o Condomínio Vila Bella. Tais vínculos empresariais reforçam a suspeita de que a disputa pela terra quilombola na APA do Curiaú não é apenas uma questão de posse, mas sim um possível caso de especulação imobiliária motivado pelo interesse na expansão urbana.
O advogado da juíza, Rodrigo Utzig, foi procurado pela equipe de reportagem para apresentar a versão dos requerentes sobre o processo, mas não respondeu aos contatos até o fechamento desta matéria.
A intensa disputa pela terra, que escalou para a demolição de uma casa e o bloqueio da Rodovia AP-70 pela comunidade, tem suas origens em dois processos judiciais distintos, mas interligados, que miram diferentes gerações da mesma família quilombola. No centro do conflito está a posse de uma vasta área que, historicamente, pertence à Comunidade Taba Branca.
Acordo não judicial e vitórias na Justiça
Segundo o advogado que acompanha o caso da comunidade Taba Branca, Ruy Carvalho, a disputa inicial girava em torno de uma área de mais de 1.000 hectares.
O pai da juíza Keila Utzig, Jose Ferreira Bastos Monteiro, que se apresentavam como proprietários da área, utilizaram um antigo acordo extrajudicial feito entre o falecido “seu” Raimundo Leite (conhecido como “Guri”), ancestral da família quilombola, como se fosse um título judicial passível de execução.
“O Seu Raimundo Leite fez um acordo com ele, porque ele (Jose Ferreira Bastos Monteiro) já estava há muito tempo numa jogada de adquirir essas terras. A família descendentes quilombolas por não ter muito conhecimento, não se preocupou em legalizar a terra, entrar com usucapião,” relatou o advogado.
O primeiro processo judicial, que tratava da posse da área, tramitou em todas as instâncias, chegando até o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em todas elas, a família da Juíza Keila Utzig foi derrotada, resultando no trânsito em julgado da decisão favorável à comunidade.
No entanto, um segundo processo movido pelos supostos proprietários foi contestado, agora em desfavor do herdeiro descendente quilombola, Deusivaldo Costa, filho de “seu” Mateus Ramos da Costa e neto de Raimundo Leite, “seu Guri”.
Com o segundo processo de reintegração de posse, a família da juíza Keila, de forma ardilosa, segundo o advogado da comunidade, encontraram no processo, inicialmente arquivado, uma forma de “continuar contestando”.
Os supostos proprietários alegaram que Deusivaldo havia “esbulhado” (invadido) um hectare, o que lhes deu a vitória na segunda instância, garantindo a posse de um hectare.
A maior denúncia da comunidade e de seus defensores é a suspeita de má-fé e fraude processual na fase de execução da sentença. O título judicial concedia a posse de apenas um hectare, mas, segundo a fonte, os demandantes entraram com o pedido de execução de sentença exigindo a desocupação de 1.371 hectares.
O juiz do caso, na época, ao ser alertado por meio de embargos feito pelo advogado defensor, reconheceu o erro, alegou “penitência” e limitou o mandado à área correta de um hectare. No entanto, mesmo após a correção, a família do suposto proprietário teria continuado a agir com má-fé.

Marinilde Costa, remanecente de quilombo e moradora da comunidade, descreveu a ação como violenta e ilegal. “Hoje, nós fomos surpreendidos pela Polícia Militar invadindo a casa do meu irmão junto com oficial de justiça… E em nenhum momento nós, familiares, fomos citados. Fomos informados sobre a situação,” relatou. Ela destacou que o processo se arrasta por mais de 70 anos e criticou a ação que derrubou uma casa “que não estava citada no processo”.
A execução do mandado, que levou à demolição de uma casa do tio de Deusivaldo, que sequer estava no processo, foi classificada como ilegal e violenta pela comunidade. A execução se deu, segundo a comunidade, através da utilização de um mandado antigo e por um oficial de justiça, que agiu em conjunto com o advogado, tomando conta de toda a propriedade da comunidade. No local, 70 búfalos e mais de 15 porcos pertencentes aos quilombolas ficaram retidos após os invasores “meterem uma chave no portão e botarem três seguranças lá dentro”.
A defesa da comunidade já entrou com impugnação à execução e uma petição pedindo a reversão da situação, o ressarcimento dos danos e a garantia de acesso dos proprietários legítimos à sua terra para alimentar os animais.
A dirigente da Conaq Amapá, Núbia Cristina Sousa, reforçou a indignação com a forma da execução, que teria ocorrido sem a devida legitimidade e violando uma ordem do STJ que beneficia a comunidade. “A partir das 05h00, as famílias foram abordadas por pessoas que não eram legitimadas pela justiça como oficial e polícia, quebrando a casa do senhor Manoel, que nem citado dentro da ação foi,” afirmou. Ela também levantou a suspeita de interesse particular no local por parte de uma juíza, que teria “intenção de construir um outro imóvel aqui dentro.”
Especulação Imobiliária na APA do Curiaú
A suspeita de que a disputa não se limita à posse de terra, mas sim à especulação imobiliária, é um dos pontos centrais levantados pela defesa dos quilombolas. A comunidade acredita que a verdadeira intenção da família da juíza Keila é o loteamento da área.
“Suspeitamos que eles estão querendo mandar lotear lá para fazer um conjunto habitacional,” afirmou o advogado Ruy Carvalho. “O objetivo deles não é plantar nada, não plantam nada lá. É pura especulação imobiliária.”
A área em disputa está localizada na APA do Curiaú, uma Área de Proteção Ambiental, onde a construção de um conjunto habitacional é questionável.




