Editorial | O marco temporal é um retrocesso anunciado e nós já vimos os sinais

A aprovação do marco temporal no Senado não é apenas uma derrota jurídica para os povos indígenas do Brasil. É […]


A aprovação do marco temporal no Senado não é apenas uma derrota jurídica para os povos indígenas do Brasil. É um retrocesso civilizatório que se desenha diante dos nossos olhos, e que, para quem esteve na COP30 em Belém, acompanhando de perto as vozes originárias, soa ainda mais grave, mais urgente, mais vergonhoso.

A votação ocorreu em meio a um clima político marcado por pressa, barganhas e um Senado disposto a ignorar não apenas as evidências ambientais, mas também a decisão recente do próprio Supremo Tribunal Federal, que considerou o marco temporal inconstitucional. Mesmo assim, senadores de vários partidos, impulsionados por pressões da bancada ruralista e por interesses econômicos que orbitam o agronegócio e a mineração, optaram por ressuscitar uma tese que serve mais para legalizar apropriações indevidas de terras do que para garantir segurança jurídica. A votação foi tratada como um aceno político, não como um debate sério sobre direitos constitucionais.

Nas últimas semanas, ouvimos mulheres e homens indígenas de diferentes territórios falarem sobre futuro, clima e sobrevivência. Não em discursos genéricos, mas em relatos diretos, marcados por perdas, invasões, violência e resistência ancestral. Vivemos de perto a angústia de quem, mesmo oferecendo ao mundo a solução mais concreta para a crise climática, a proteção da floresta, continua sendo silenciado dentro do seu próprio país.

Foto: Rudja Santos


A aprovação no Senado expõe a fragilidade de um país que ainda não decidiu quem deve viver e quem deve ser sacrificado em nome de um progresso que nunca chega aos povos da floresta. E revela que, apesar das belas falas em conferências internacionais, o Estado brasileiro segue refém de interesses que promovem o apagamento sistemático das populações originárias.

Enquanto o Brasil ocupa palcos internacionais para se anunciar líder climático, o Congresso aprova uma tese que nega a história, ignora a Constituição e desconsidera a relação milenar desses povos com seus territórios. O marco temporal tenta transformar um crime histórico, a expulsão forçada de comunidades antes de 1988, em argumento jurídico. Legaliza a injustiça. E dá um recado claro: para parte da classe política, desenvolvimento ainda é sinônimo de destruir, excluir e apagar.

Durante a COP, vimos delegações estrangeiras elogiarem o protagonismo indígena e reconhecerem que não existe solução climática sem demarcação e proteção territorial. Mas, ao mesmo tempo, notificamos a contradição: enquanto o mundo aponta para florestas em pé, parte do Brasil legisla para fragilizá-las. A política nacional caminha para trás enquanto a emergência climática exige correr.

É impossível não lembrar das conversas em corredores, dos depoimentos emocionados de lideranças jovens e anciãs, das denúncias de violência que recebemos com o gravador ainda quente. Todos, absolutamente todos, repetiam uma frase: “Sem território, não há vida.” É esse princípio básico que o marco temporal ameaça.

Foto: Myke Sena

Este editorial não pretende ser neutro. Neutralidade diante da injustiça é cumplicidade. O marco temporal é inconstitucional, é violento e é um retrocesso profundo, jurídico, ambiental, ético e civilizatório. É também um ataque direto à política climática que o Brasil diz defender lá fora, enquanto mina internamente as bases que poderiam sustentá-la.

Quem esteve na COP e acompanhou de perto a luta dos povos indígenas sabe: não são eles que estão no passado. É o Senado. E, se o país não escutar os verdadeiros guardiões dos territórios, perderemos muito mais do que uma disputa jurídica. Vamos perder o futuro.

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