COP Quilombola: lideranças cobram segurança territorial e mais voz na COP30 em vídeo final 

Manifesto gravado em vídeo foi lançado no encerramento do encontro em Macapá e sintetizou demandas dos representantes afrodescendentes e quilombolas. Enquanto isso, carta com demandas a serem levadas para Belém, na conferência, segue em elaboração.

O movimento quilombola e afrodescendente do Brasil e de outros países da América Latina  e do Caribe consolidou suas demandas para a agenda climática internacional em um vídeo-manifesto com o tema: “Não há justiça climática sem justiça para os povos quilombolas”. A produção resulta dos debates realizados entre 22 e 26 de setembro, durante a COP Quilombola, evento promovido pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) para levar as pautas das lideranças à 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30).

Confira o vídeo-manifesto aqui

O manifesto contou com a participação de lideranças comunitárias, organizações da sociedade civil e ativistas do movimento negro, que relataram os anseios de cada bioma do Brasil. Também está em elaboração a Carta do Amapá, documento que irá reunir as demandas e urgências para a melhoria da vida nos territórios quilombolas e propor soluções de enfrentamento à crise climática com base no conhecimento ancestral.

Durante a roda de conversa, as reivindicações dos quilombos de diversos biomas do Brasil guiaram a formulação de propostas a serem levadas para a COP30. (Foto: Paulo Rafael/Agência Urutau)

As reivindicações quilombolas

A principal reivindicação é a titulação e a garantia dos territórios quilombolas, vista como essencial para a sobrevivência e autonomia das comunidades. Além disso, o movimento defende o reconhecimento, a participação e a voz política para as comunidades nas instâncias de decisão, como nas COPs climáticas e da biodiversidade e nas decisões dos governos federais.

Núbia Souza, dirigente da Conaq do Amapá, avaliou que, com o encontro, foi possível condensar as informações dos quilombolas do estado, trazendo um fechamento direcionado para a COP30. A principal estratégia utilizada pelas organizações será pressionar os governantes estaduais para endossar os tomadores de decisão nos espaços como a Blue Zone.

“Um dos pontos mais importantes é a questão da regularização fundiária. Não dá para se pensar uma Amazônia sem título coletivo para as comunidades que não podem defender sozinhas seus territórios. É preciso resguardar nosso direito ao território”, defende Núbia. 

Durante o evento, ao se dirigirem aos líderes mundiais da COP30, os quilombolas querem transmitir uma mensagem direta e imperativa: “somos os verdadeiros guardiões da floresta”. O movimento exige o entendimento de que “não existe preservação sem quilombolas” e que o reconhecimento dos saberes ancestrais é fundamental e insubstituível no combate à crise climática.

Biko Rodrigues, da coordenação nacional da Conaq, explicou que a Carta do Amapá é um documento específico, a ser entregue ao governo brasileiro, que tem como objetivo chamar a atenção, cobrar medidas e denunciar a situação de vulnerabilidade das comunidades quilombolas.

“Estamos encerrando a COP Quilombola, aqui no estado do Amapá, algo que para nós é muito importante. Esperamos que essa carta possa ter efeito para dentro do Estado brasileiro e que com isso a gente possa firmar o compromisso assertivo para que o Estado possa regularizar e ter uma meta de regularização fundiária dos territórios quilombolas”, completou. 

Racismo ambiental

A voz da Comunidade Quilombola de Ilha Redonda, localizada a cerca de 20 km do centro de Macapá, no Amapá, ecoou na COP Quilombola: há mais de 25 anos, o quilombo convive com um lixão — posteriormente transformado em aterro sanitário — instalado em suas terras sem autorização prévia, o que, segundo os moradores, configura um claro caso de racismo ambiental.

Comunidades de várias regiões do Amapá apresentaram suas dificuldades na busca por visibilidade e apoio internacional, entre elas a Comunidade Quilombola de Ilha Redonda. (Foto: Paulo Rafael/Agência Urutau)

Josivan Lima Ramos, da Associação de Moradores e Agricultores da Comunidade Quilombola de Ilha Redonda (AMACQUIR) e vice-presidente da comunidade, se sente frustrado com a situação. Para ele, a presença da lixeira impacta diretamente na vida e na identidade da comunidade. A realidade em que vivem é um claro exemplo das violações contra a população quilombola do Amapá.

“A gente está sofrendo todo tipo de poluição e ninguém faz nada. Os governos não fazem nada. A justiça não faz nada. Nosso ar é poluído, nossa água tem mau cheiro. Alguém vai lá fiscalizar? Não vai. Aqueles urubus, moscas, fumaça. Às vezes, a gente acorda e pensa que é neblina, mas não. É fumaça do aterro ou lixeira”, diz.

Foto da entrada da comunidade de Ilha Redonda (Foto: Josivan Lima Ramos/AMACQUIR)

Após anos de luta por justiça ambiental, em 2022, o município de Macapá foi condenado a pagar R$ 1,5 milhão por danos morais coletivos à Comunidade Quilombola de Ilha Redonda. A condenação, proferida pela Justiça Federal, é resultado de uma Ação Civil Pública ajuizada em 2014 pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo Ministério Público do Amapá (MP/AP).

A ação denunciou os graves danos socioambientais e morais causados pela instalação da lixeira pública no território do quilombo há cerca de 25 anos, sem consulta prévia, livre e informada aos moradores, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho  Também ocorreu o sistemático descumprimento de dois Termos de Ajustamento de Conduta (TACs), firmados em 2005 e 2006. Eles  previam a cessão de parte do território quilombola para a lixeira em troca da implementação de políticas públicas essenciais, como saneamento básico, água potável, esgoto, saúde, educação e moradia.  No entanto, a comunidade segue sofrendo com a poluição, e os benefícios prometidos, como a construção de casas populares, escola e unidade de saúde, ficaram incompletos ou não foram entregues.

As infraestruturas básicas para o quilombo nunca foram cumpridas por parte do município de Macapá (Foto: Josivan Lima Ramos/AMACQUIR)

A decisão judicial estabelece que a indenização de R$ 1,5 milhão seja revertida integralmente para o Fundo Especial de Defesa de Direitos Difusos, que recebe recursos de condenações judiciais voltadas à compensação a danos coletivos. Esses valores devem ser aplicados, de forma obrigatória e prioritária, em políticas de beneficiamento, valorização cultural e reafirmação dos direitos da comunidade, sob coordenação da Fundação Cultural Palmares (FCP) e com a participação direta dos moradores. A prefeitura de Macapá recorreu da sentença que corre no Tribunal Regional Federal (TRF1) da 1ª Região.

Segundo o promotor de Justiça do Meio Ambiente do MP-AP, Marcelo Moreira, os processos em grau de recurso no TRF1 costumam ser lentos e é esperado um desfecho. A partir do que o TRF1 decidir, a prefeitura de Macapá ainda pode recorrer e levar o caso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e depois ir para o Supremo Tribunal Federal (STF). 

“Em contrapartida, por conta desse descumprimento dos TACs, nós requisitamos a instauração de um inquérito policial para apurar o não cumprimento do ajustamento de conduta. Agora, é por conta do Estado, já que, do ponto de vista cível, a gente não conseguiu um bom resultado”, explicou.

Apesar dos reiterados pedidos de posicionamento feitos pela Agência Urutau sobre o descumprimento dos acordos judiciais, a prefeitura de Macapá não retornou os questionamentos sobre os motivos do quais não cumpriu os TACs, quais benefícios foram ou não cumpridos e se tem planos para amenizar os impactos do aterro sanitário no quilombo da Ilha Redonda.   

Enquanto isso, Ilha Redonda resiste à poluição há mais de duas décadas. Com a participação na COP Quilombola, a esperança de Josivan Ramos é divulgar a denúncia e incluí-la nas pautas que possam incidir em grandes eventos, como a COP30.

Reconhecimento, participação e voz política

A Coalizão Internacional para a Defesa, Conservação e Proteção dos Territórios, Meio Ambiente, Uso da Terra e Mudanças Climáticas dos Povos e Comunidades Afrodescendentes da América Latina e do Caribe (Citafro) representa atualmente 16 países. Entre eles, estão Brasil, Chile, Costa Rica, Colômbia, Equador, Honduras, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela. 

A organização tem como principal missão levar as demandas históricas das comunidades afrodescendentes às mesas de decisão, especialmente de olho na COP30, em Belém. Representantes da Citafro estiveram  na COP Quilombola e contribuíram levando um olhar focado na incidência em ambientes internacionais. 

Durante a COP Quilombola, a Citafro convocou um chamado para que as entidades construam uma unidade estratégica, visando garantir e impor o poder de negociação de suas demandas internacionais. (Foto: Paulo Rafael/Agência Urutau)

Segundo José Luiz Rengifo, da organização colombiana Processo de Comunidades Negras (PCN), é necessário romper com a subrepresentação do povo negro nas decisões globais. Rengifo aponta que, historicamente, documentos e convenções da ONU, como as de Biodiversidade e Mudança Climática, reconhecem apenas comunidades indígenas e locais, invisibilizando os afrodescendentes.

O trabalho através da Citafro é provar, em cenários internacionais, que os afrodescendentes são “sujeitos de direito”, com território, cultura e um papel essencial no cuidado com a natureza. 

“O que estamos dizendo aos tomadores de decisões em todos os cenários onde podemos participar é que nós somos sujeitos de direito. Nós não podemos continuar sendo invisibilizados no âmbito da tomada de decisões. Por isso, solicitamos muito energicamente que nossas posturas, nossas demandas, possam ser levadas em conta no âmbito das tomadas de decisões. Não podemos aceitar que outros falem por nós, nós devemos falar por nós mesmos”, afirma Rengifo. 

José Luiz Rengifo defende o reconhecimento imediato das contribuições ambientais das comunidades afrodescendentes em seus territórios (Foto: Acervo Processo de Comunidades Negras (PCN))

Para ele, as comunidades afrodescendentes, que vivem em ecossistemas mais afetados pelas mudanças climáticas (como rios, mares e a Amazônia), se posicionam como cuidadores ancestrais da natureza.

Rengifo enfatiza que suas práticas e saberes – guiados pela filosofia africana do “Ubuntu” (“eu sou porque nós somos”) – são inerentemente coletivos e voltados para a conservação.

Para que essa contribuição seja efetiva, a coalizão luta por uma mudança no modelo de financiamento climático. Em vez de o dinheiro passar por ONGs e intermediários, a Citafro exige que os investimentos sejam feitos diretamente às comunidades e suas organizações.

Rengifo avalia que esse financiamento precisa apoiar as causas ancestrais da perda de biodiversidade e o combate aos efeitos climáticos dentro dos territórios, permitindo que a sabedoria local seja valorizada como parte do desenvolvimento sustentável.

“A mudança climática exige apoio dentro do território. Assim como necessita de pesquisa e participação, também precisa de cuidado e da participação ativa das distintas comunidades para contribuir com isso. Isso se faz dentro dos territórios, não somente a partir de um escritório fora dos países ou em outros países que se consideram muito mais desenvolvidos do que os outros”, coloca Rengifo.

A coalizão trabalha ativamente em cada país-membro, buscando incluir suas aspirações nas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) e mobilizando governos, como o do Brasil e Colômbia, para impulsionarem um novo reconhecimento na COP30, replicando a conquista da COP16, que ocorreu em Cali, Colômbia, em 2024, que reconheceu a contribuição das comunidades afrodescendentes na Convenção sobre Diversidade Biológica.

Produtor jornalístico: Paulo Rafael 

Esta reportagem é uma parceria da InfoAmazonia com a Agência Urutau e faz parte da Rede Cidadã InfoAmazonia, iniciativa para criar e distribuir conteúdos socioambientais da Amazônia. 

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